Uma história que ouvi sem querer e que gosto de lembrar em dias em que a desesperança aparece de mansinho, assim, como quem não quer nada
Foi com as mãos dadas ao tio Pedro, que entrou pela primeira vez em uma sala de cinema. O tio foi o único da numerosa família, retirante do interior de Pernambuco, que ao chegar a São Paulo não encontrou miséria ainda pior do que a do sertão. Toda sexta-feira, único dia de folga de tio Pedro, o pequeno José lembrava-se de que era uma criança, pois não precisava trabalhar e divertia-se com alguma novidade trazida pelo tio. Durante todos os outros seis dias da semana, José trabalhava como servente de pedreiro em obras comandadas por Pedro – seu tio-herói.
José tinha 8 anos e morava em um barraco com sua mãe e seus sete irmãos. O pai havia morrido antes de deixarem o Nordeste, de uma doença desconhecida, desde então se despediu de sua infância, pois quando não estava trabalhando duro nas obras, estava em casa cuidando dos irmãos mais novos. Seu único refúgio eram as tão aguardadas sextas-feiras.
Aquela foi especial, ao entrar no cinema se encantou e guardou cada cena do filme na memória como se guardam os momentos mágicos da vida. Talvez o mais importante, pois depois daquela sexta, seu dia de criança não voltaria a acontecer, o tio morreu e levou com ele tudo o que restava de alegria, José teve que abandonar o serviço nas obras e a família passou a ter mais dificuldades. Já eram apenas quatro irmãos, a mãe desesperando-se ao ver os filhos morrendo como o pai, de doenças desconhecidas, pois médico era um luxo que não poderiam usufruir.
José então virou catador de lixo. Saía com seu carrinho pela cidade de São Paulo em busca de algo que pudesse vender ou usar. Aos oito anos tinha responsabilidade de sustentar sua família e o fez. Passava os dias com o carrinho e à noite, lia sobre cinema. O tio lhe deixou o seu maior legado: a leitura. E assim, freqüentador da biblioteca, já era entendido de cinema, conhecia desde o processo de produção do filme até a projeção na tela.
Desde então a vida não lhe reservou grandes surpresas, estava com 56 anos e ainda era catador de lixo, agora para sustento próprio. A família voltou para o nordeste quando estava com 20 anos e desde este dia vive sozinho no mesmo barraco da infância, embora modificado e já com aparência de uma casa decente.
Em uma de suas expedições pelo lixo, encontrou várias películas de filmes. Esta descoberta foi seguida de outras, um dia encontrava um projetor velho, outro dia, mais rolos de películas. Foi quando surgiu seu sonho: montar o próprio cinema.
Passava as noites construindo seu projeto, e continuava a guardar o que encontrava, começou a procurar pessoas interessadas em contribuir financeiramente. De tanto procurar, encontrou. Uma loja de materiais de construção do bairro aceitou financiar o material.
O sonho começava a se tornar realidade. José construiu a sala na frente da sua casa, pintou, seu cinema ficou exatamente como imaginava. A fachada é colorida e com imagens de ícones do cinema como Charlie Chaplin e Marilyn Monroe. As poltronas foram encontradas no lixo, uma a uma durante anos. O telão construído, o projetor consertado, as tiras de películas emendadas uma na outra com fita adesiva e seu cinema estava pronto.
A estréia foi um sucesso, o público lotou a pequena sala. Crianças, adultos, idosos, o bairro pobre do subúrbio pôde conhecer o cinema. Há dois anos o cinema do seu José diverte e encanta as pessoas. Quando entram na sala, nunca sabem o que irão assistir. Como as tiras são emendadas, a sessão pode começar com um clássico de Walt Disney e terminar com um suspense de Hitchcock. Mas não importa, a magia encanta a todos, que se não fosse por seu José, jamais conheceriam o cinema.
Ele não cobra entrada e, quando sobra um dinheiro de suas vendas de sucata, ainda compra pipoca para distribuir ao público (na maioria crianças). O cinema do seu José exibe uma sessão por semana.
O dia? Sexta-feira é claro.
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